O caso dos seis transplantados que receberam órgãos contaminados pelo HIV no Rio de Janeiro é o primeiro do tipo no país, relata a infectologista e coordenadora da Comissão de Infecção em Transplante da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), Lígia Câmera Pierrotti.
Segundo a especialista, a detecção precoce do vírus e de outras infecções em doadores é eficaz devido aos avanços nos testes de triagem de todo o Sistema Nacional de Transplantes (SNT), que permitem a identificação de diversas infecções em estágios iniciais da doação.
O Sistema Nacional de Transplante tem critérios rigorosos para o rastreio de doadores de órgãos, que seguem portarias estabelecidas em conjunto com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Todos os órgãos doadores devem passar por testes de sorologia para HIV, hepatite B, hepatite C, HTLV e outras infecções.
Além disso, o rastreio leva em conta o contexto geográfico. Por exemplo, a doença de Chagas é investigada na América Latina, mas não na Europa ou nos Estados Unidos. Já os testes para HIV, hepatite B e hepatite C são obrigatórios, e no Brasil, não se aceita um doador HIV positivo para transplante.
“E os mesmos testes são realizados para o receptor”, acrescenta Pierrotti.
A triagem laboratorial consiste em examinar amostras de sangue de potenciais doadores para identificar infecções, como HIV e hepatites B e C.
Os exames ajudam a excluir doações que poderiam comprometer a saúde dos pacientes que esperam por transplantes. Além dos testes, são feitas entrevistas com doadores ou suas famílias e exames físicos para verificar possíveis problemas que impeçam a doação.
“O Brasil realiza um número muito grande de transplantes desde a década de 60, sendo o quarto país que mais realiza transplantes de fígado e rim no mundo, reconhecido internacionalmente pela qualidade de sua atividade, sem casos de transmissão de HIV até então”, diz Pierrotti
O Ministério da Saúde define critérios técnicos mínimos para essa triagem, buscando proteger os receptores dos transplantes.
Se o doador tiver um histórico recente ou ativo de câncer, os órgãos não são utilizados. Porém, existem exceções, como alguns tipos de câncer de pele, que têm um baixo risco de transmissão.
Por isso, os testes laboratoriais são fundamentais nessa triagem. Isso inclui exames de sangue e outros testes que ajudam a identificar possíveis problemas de saúde.
Quando um doador apresenta uma infecção bacteriana, por exemplo, a doação pode ser aceita, desde que ele esteja recebendo tratamento adequado com antibióticos por pelo menos 48 horas. Agora, após o transplante, o receptor deve continuar a receber antibióticos por pelo menos sete dias.
Onde são feitas as sorologias?
De forma geral, as sorologias são realizadas em grandes centros de transplante, onde se busca garantir a segurança tanto dos doadores quanto dos receptores de órgãos.
Em alguns países, há recomendações específicas sobre como lidar com a rastreabilidade dos doadores. Em certas situações, não se recomenda rastrear todos os casos para evitar complicações. No entanto, quando surgem eventos adversos nos receptores, como infecções, a chamada vigilância retroativa é prevista e necessária.
Por isso, nesses casos, é fundamental investigar o doador para identificar possíveis fontes de infecção. No caso do Rio, uma contraprova foi feita com o material de um doador, que identificou a presença do HIV. Em seguida, as autoridades de saúde rastrearam os demais receptores e confirmaram que as pessoas que receberam um rim cada também testaram positivo para o HIV.
Por isso, o Ministério da Saúde solicitou a interdição cautelar do laboratório ordenou a retestagem do material de todos os doadores.
“O Ministério da Saúde e os demais agentes sanitários reforçaram as normas e orientações técnicas, que já são robustas, com o intuito de aprimorar os procedimentos de identificação de doenças transmissíveis antes da doação. Esse esforço visa reduzir ainda mais as chances de transmissão de infecções como o HIV ou a Hepatite C, garantindo que o sistema de transplantes no Brasil continue a operar dentro dos mais altos padrões de segurança”, afirmou a pasta, em nota.
Por que esse foi um caso ímpar?
Segundo médicos infectologistas ouvidos pelo g1, o risco de infecção como resultado de um transplante de órgão é baixo:
- Isso porque o processo de rastreamento infeccioso é extremamente criterioso no Brasil, abrangendo não só o HIV, mas também hepatites, além de doenças bacterianas e virais.
- No SUS, o sistema de transplantes é um dos que funciona com excelência.
No caso do Rio de Janeiro, o governo do estado informou que o erro foi atribuído ao laboratório privado PCS Lab Saleme, localizado em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
A Anvisa descobriu ainda que o PCS não tinha kits para realização dos exames de sangue nem apresentou documentos comprovando a compra dos itens, o que levantou a suspeita de que os testes podem não ter sido feitos e que os resultados tenham sido forjados.
“Os novos testes contra HIV têm uma janela de apenas quatro semanas, o que torna o risco de contaminação muito baixo, pois são altamente sensíveis para diagnosticar o vírus”, explica Álvaro Costa, infectologista do Hospital das Clínicas da USP.
“Nesse processo, é fundamental conversar com o doador, avaliar os exames e garantir que a investigação seja feita corretamente. O problema surge quando não se realiza essa avaliação completa no doador”, acrescenta Costa.
O vírus atinge principalmente os chamados linfócitos T CD4+. Ele modifica o DNA dessas células e se replica. Após se multiplicar, o HIV destrói os linfócitos e continua a infecção em novas células.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a Health Resources and Services Administration supervisiona a doação e o transplante de órgãos, garantindo que os doadores sejam devidamente testados antes de seus órgãos serem aprovados para transplante.
Desde 2013, as diretrizes de saúde pública no país exigem que todos os doadores, vivos ou falecidos, sejam submetidos aos testes mais sensíveis disponíveis para minimizar o risco de transmissão de HIV.
Como são feitos os testes?
No Brasil e em outros países, o teste padrão para detectar o HIV é o ELISA de 4ª geração, que identifica o vírus em 95% dos casos após 4 semanas. Após 6 semanas, a precisão chega a praticamente 100%.
De acordo com o Ministério da Saúde, o procedimento começa com esse teste inicial, chamado de triagem sorológica.
Ou seja, se o resultado for negativo, a pessoa é considerada livre do HIV e não precisa de mais exames. Mas, se o resultado for positivo ou incerto, a amostra passa por um segundo teste, diferente do primeiro, para confirmar.
Além disso, testes adicionais como imunofluorescência ou western blot (um método para identificar proteínas) podem ser usados para garantir o diagnóstico.
Isto é, se o diagnóstico for positivo, o laboratório deve pedir uma nova amostra do paciente cerca de 30 dias depois para confirmar. Se houver diferenças nos resultados entre os testes, o exame western blot será necessário para esclarecer.
Como ocorre a transmissão?
A transmissão pode ocorrer por meio de relações sexuais sem proteção, pelo compartilhamento de seringas contaminadas ou de mãe para filho durante a gravidez e a amamentação, caso não sejam adotadas as medidas preventivas necessárias.
Assim, a maneira mais eficaz de prevenir o HIV é a prevenção combinada, que utiliza várias abordagens simultâneas para atender diferentes necessidades e formas de transmissão.
A PrEP, por exemplo, é uma das principais formas de prevenção do HIV. Comprimidos são tomados em esquemas diferentes (PrEP diária e sob demanda) antes da relação sexual, o que permite ao organismo estar preparado para enfrentar um possível contato com o HIV.
Em casos de situação de risco, como sexo desprotegido ou uso compartilhado de seringas, o Ministério da Saúde orienta a testagem contra o HIV. Se a exposição ocorreu há menos de 72 horas, procure informações sobre a Profilaxia Pós-Exposição ao HIV (PEP), um método de prevenção com o uso de medicamentos antirretrovirais após um possível contato.
G1