No quadro “Nossa Gente é Sucesso”, temos o privilégio de conhecer um pouco mais sobre Angela Cheirosa — mulher preta, nordestina, de 51 anos, que é professora, bailarina, coreógrafa, escritora, palestrante, mãe, filha, amiga e, acima de tudo, uma mulher que se dedica a ser plenamente ela mesma.
Angela nunca imaginou que se tornaria uma referência na dança do ventre, mas sua trajetória é um exemplo de superação, força e resiliência. Hoje, com sua arte, ela leva o nome de Camaçari para todo o Brasil e inspira pessoas por onde passa.
Em nossa conversa, Angela compartilhou suas experiências sobre carreira, os desafios enfrentados, a importância da representatividade e o impacto de sua arte na vida de tantas pessoas. Ela também falou sobre seus planos para o futuro e o legado que pretende deixar. Uma história de luta e conquistas, que reflete a diversidade, a beleza e a força da mulher nordestina.
Confira a entrevista:
Sobre sua Carreira e Dança
NOSSA METRÓPOLE: Angela, você é uma grande referência quando se fala em dança do ventre. Como começou sua trajetória nessa arte, e o que a atraiu para essa dança?
ANGELA CHEIROSA: Até começar a dançar, eu nunca tinha pensado em dança do ventre como uma possibilidade. Quando conheci a arte por meio de Nelly, minha primeira professora, entendi ali o poder da arte e da dança como instrumento de transformação na vida das pessoas. Eu vinha de um luto profundo, com consequências como depressão e outras dores que a gente não sabe nomear. Comecei a dançar para me manter viva e hoje entendo que esse é o meu propósito: usar dança como instrumento de transformação na minha vida e das pessoas que meu trabalho alcançar.
NOSSA METRÓPOLE: A dança do ventre é muito conhecida por sua conexão com o corpo e suas formas. Como você enxerga a importância dessa dança para mulheres, especialmente para aquelas que têm a autoestima baixa?
ANGELA CHEIROSA:Dança do ventre, ouso dizer, é a mais feminina de todas as danças, apesar de ser praticada lindamente por muitos homens, é uma dança socialmente lida para mulheres na maioria do tempo. Contudo, é uma arte/cultura não ocidental, que sofre interferência na forma como a sociedade enxerga a dança e as pessoas que a praticam. Então é comum que as pessoas acreditem que há um perfil padrão para a prática da modalidade e que há corpos ideais para dançar. E eu acredito que aqui está o meu diferencial, eu consegui, dentro dessa lógica, mostrar para o mercado e para as pessoas que dança do ventre é para todo mundo. Todo corpo merece dançar! As pressões estéticas que nos afligem é sim um dificultador, mas a cada dia, nós mulheres, estamos tomando consciência da importância da diversidade nos diversos segmentos da sociedade e também na dança. Não é fácil manter autoestima alta numa sociedade que nos diz todos os dias e de diversas formas que não somos boas o suficiente.
NOSSA METRÓPOLE: Como é a sua preparação para uma apresentação de dança do ventre? Quais são os principais desafios que você encontra no dia a dia da prática dessa dança?
ANGELA CHEIROSA:Minha preparação sempre começa com a escolha do repertório, seguida da preocupação com a estética: cabelo, unhas, maquiagem, figurino, tudo faz parte da preparação. No dia a dia, a preparação é contínua, além das aulas, mantenho uma rotina de atividades física, para manter o fôlego em dia. Pessoalmente falando, acredito que o mais desafiador é manter a rotina, conciliando as diversas versões de mim, com qualidade, responsabilidade e saúde mental. São aulas diárias, manutenção das redes sociais, uma turnê nacional em curso que já está no terceiro ano, as demandas pessoas.
Representatividade e Inspiração
NOSSA METRÓPOLE: Você é uma mulher negra, e sua arte tem sido um canal de empoderamento para outras mulheres que se veem representadas por você. Como a sua identidade racial e cultural influencia sua dança e sua trajetória artística?
ANGELA CHEIROSA: A coisa mais impactante que eu escuto sobre representatividade é: “Eu danço porque você existe”. Ser uma mulher negra, numa dança em que todo mundo esquece que é africana é muito emblemático. Os espaços de protagonismo no Brasil, seja no mercado de trabalho convencional, nas mídias ou nas artes, de modo geral não são ocupados por mulheres negra e, apesar de sermos maioria da população, não há representatividade nesses espaços, restando apenas configurar nas estatísticas de violência, subempregos, população carcerária e no preterimento de afeto. Então, minha presença nesse espaço tão branco que é a dança do ventre, uma dança ainda elitizada, que não chega para todos, é muito significativa, não só com dança, com arte, mas no combate diário ao racismo estrutural que ainda me torna uma exceção.
NOSSA METRÓPOLE: Você se considera uma inspiração para outras mulheres, especialmente para aquelas que não se veem representadas em espaços artísticos ou culturais? Como você lida com essa responsabilidade de ser referência?
ANGELA CHEIROSA:Complementando a resposta anterior: É uma responsabilidade muito grande. Ocupar lugar de destaque, fazer com que tantas pessoas vejam a dança como possível para elas e fazer com que a arte chegue ao maior número de pessoas possíveis é um desafio. Há 15 anos mantenho o Projeto Social Flor de Lótus, nas comunidades de Camaçari e isso tem me ajudado a cumprir meu propósito. As aulas on-line, que se tornaram uma realidade durante a pandemia, também propiciou que meu trabalho chegue em lugares que nunca sequer imaginei. A cada cidade, estado que visito com a minha tournée percebo o quanto o que eu faço impacta na vida das pessoas. E quanto maior o reconhecimento, maior a responsabilidade.
NOSSA METRÓPOLE:No seu trabalho, você busca sempre expressar a potência e a beleza das mulheres em sua totalidade. Como você enxerga o papel da dança no empoderamento feminino, principalmente para as mulheres negras?
ANGELA CHEIROSA:Empoderamento feminino é um termo desgastado, dada a banalização do tema nas redes sócias. Sem contar que é preciso falar de empoderamento com recorte racial sempre. Porque enquanto para mulheres não negras o empoderamento está ligado ao protagonismo no mercado de trabalho, independência financeira, carreira, melhoria na qualidade de vida, para mulheres negras, empoderamento ainda tem a ver com questões estéticas, com aceitação dos traços, do cabelo e pouco tem a ver com poder. Então para nós ainda é uma luta ter autoestima, manter nossos traços e características, enquanto a sociedade nos lê como feias, fora do padrão e o racismo nos imputa uma série de desvantagens. Nesse contexto a dança é um resgate e a consciência de que a arte nos pertence, que merecemos dançar e que temos direito ancestral de movimentar nosso corpo, nos empodera para a vida. Nunca é só dança!
NOSSA METRÓPOLE: Durante sua carreira, quais histórias ou encontros com outras mulheres mais te marcaram, seja no palco ou nos bastidores, que mostram como sua dança pode transformar e inspirar?
ANGELA CHEIROSA:Às vezes eu nem acredito onde meu trabalho chegou. Com a contribuição da internet, mulheres de todo o Brasil e de diversos outros países tiveram acesso ao meu trabalho e a minha história. O fato de ter participado do Programa Encontro, na rede globo, ainda com a apresentação da Fátima Bernardes, também projetou nacionalmente meu trabalho. Pessoas de todas as idades dançam, mulheres negras, fora do padrão, pessoas com histórias de luta se permitiram dançar por conta da minha referência. Pessoas brancas se aliam a causa e se esforçam para entender a pauta racial, a questão da necessidade da diversidade. Me emociona a emoção e a felicidade das pessoas em me encontrar pessoalmente, elas me contam suas histórias e me dizem como eu fiz diferença na vida delas. Eu não me acostumo nunca! Sempre me emociono!
Desafios e Superações
NOSSA METRÓPOLE:A dança do ventre, por sua natureza, exige uma conexão muito profunda com o corpo e a autoestima. Já passou por momentos de insegurança ou desafios relacionados à aceitação do seu corpo, ou da sua arte? Como superou esses obstáculos?
ANGELA CHEIROSA:No começo foi muito difícil! Existem padrões, selos, certificações, figurinos, regras implícitas que diziam que dança do ventre não era para mim. Insisti às inúmeras vezes que me senti deslocada, ou que o racismo e a gordofobia falaram mais alto foi desafiador, mas eu sempre tive um propósito e hoje ele é uma realidade.
NOSSA METRÓPOLE:Em um meio artístico que ainda possui uma certa predominância de padrões estéticos, quais foram as maiores dificuldades que você enfrentou como mulher negra, e como você construiu sua trajetória superando essas barreiras?
ANGELA CHEIROSA:Essa acredito que já respondi acima
Planos e Legado
NOSSA METRÓPOLE:O que você deseja para o futuro da dança do ventre no Brasil, especialmente em relação à diversidade e à representatividade de corpos diversos?
ANGELA CHEIROSA:Ainda não alcançamos o ideal, mas já caminhamos muito! Hoje é possível ver um pouco de diversidade, na prática da dança do ventre, ainda que essa mudança ainda não tenha alcançado os espaços de protagonismo. Ainda é um lugar muito solitário para mim. Hoje temos o movimento Bellyblack, projeto idealizado por mim e outras bailarinas negras do mercado, que busca promover a diversidade no cenário da dança do ventre. Assim como em todos os outros segmentos da sociedade, para o cenário mudar, é preciso investir em educação. Só a educação vai nos salvar!
NOSSA METRÓPOLE: Como você imagina o legado que deseja deixar com seu trabalho? O que você gostaria que as futuras gerações de mulheres, especialmente as negras, aprendessem com sua trajetória?
ANGELA CHEIROSA:Com toda modéstia que me falta, eu acredito que transformei positivamente o mercado da dança do ventre no Brasil. Ainda que meninas e mulheres negras não saibam meu nome no futuro, elas se beneficiarão do legado deixado por mim. Dança para todos, um pouco mais inclusiva, um pouco mais democrática e acima de tudo, uma dança que não se cala, dança como ato político, arte como ato político. As futuras gerações não irão se calar!
NOSSA METRÓPOLE: Por fim, o que você diria para uma mulher que está começando a dançar, mas que ainda sente medo ou insegurança de se expor através da dança, especialmente no contexto da sociedade atual?
ANGELA CHEIROSA:Não desista! Tudo indica e coopera para que você desista, mas não deixe de dançar. Vivemos fazendo concessão e renunciando coisas que nos fazem felizes em nome da família, dos filhos, do emprego, priorizamos sempre o outro. Se priorize pelo menos uma vez. Reserve aquela uma hora e meia, duas horas por semana para você. Com certeza você irá trabalhar melhor, ser melhor mãe, melhor companheira, melhor profissional e melhor amiga se você estiver bem. A vida é melhor quando dançamos!
Angela Cheirosa, mulher preta, gorda, nordestina, de 51 anos, professora, bailarina, coreografa, escritora, palestrante, mãe, filha, amiga e tudo mais que for necessário ser para ser plenamente eu.
Redação Nossa Metrópole / Vilsana Almeida