Na necessidade, Fabiano*, 49, roubou quatro pacotes de carne de um supermercado na Vasco da Gama, em 2016. O valor da compra era, na época, não passava de R$ 400. Ele, que é pai de três filhos, se arrepende até hoje do delito, que o levou à prisão. Crimes como esse, conhecidos como famélicos – quando alguém furta algo essencial à sobrevivência – basicamente dobraram em Salvador, nos últimos cinco anos.
De 2017 para 2021, a proporção entre esses tipos de roubo e os furtos comuns saiu de 11,5% para 20,25%. Em 2017, foram 554 furtos, sendo 64 de alimentos, contra um total de 237, no ano passado, sendo 48 de alimentos. Já em 2022, essa proporção está em 16, 21%, considerando os meses de janeiro e fevereiro – 37 furtos, dos quais seis de alimentos. Os dados são de um levantamento da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA).
Fabiano tem muita dificuldade de falar do assunto, tanto que seus filhos ainda não sabem da situação. Ele relata ter causado muita dor, constrangimento e vergonha à família. “Me arrependo muito e estou pagando o preço por isso. Foi ridículo de minha parte e não é justificável. Já tive várias portas trancadas, batidas na minha cara. Todo mundo erra, mas não farei isso nunca mais, porque alguns erros que a gente comete tem consequências gravíssimas”, desabafa.
No caso da diarista Severina*, 28, o roubo foi de produtos de higiene, em uma unidade das Lojas Americanas, no Shopping da Bahia, em janeiro de 2022, na capital. Sem trabalho, grávida de oito meses, com três outros filhos e em situação de rua, ela via os filhos passarem necessidades e, em um momento de desespero, furtou sabonete, pasta de dente, calcinhas e prestobarba da loja.
Segundo Severina, o furto aconteceu porque uma mulher lhe entregou uma mochila com os itens dentro, prometendo pagar um pequeno valor em dinheiro, a ser usado para comprar alimentos. Porém, ela foi abordada pelo segurança da loja e encaminhada ao Núcleo de Prisão em Flagrante (NPF) da DPE/BA.
Embora o Ministério Público tenha pedido a prisão preventiva dela, a Defensoria solicitou a liberdade provisória. O juiz entendeu que não seria razoável mantê-la presa, inclusive “para evitar os efeitos deletérios causados pelo cárcere”.
Furto sem violência
O defensor público e coordenador da Especializada Criminal e de Execução Penal da Defensoria da Bahia, Pedro Casali, explica que o conceito de furto famélico está diretamente ligado com a não violência ou ameaça, no ato do roubo. Por esse e outros motivos, essa prática não é considerada crime, desde 2004, pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
“Por conta do princípio da insignificância, o furto famélico sequer é considerado crime pelo STF e STJ [Superior Tribunal de Justiça]. Ou seja, ele jamais deve ser cuidado pelo direito penal, porque é um problema social e ocorre devido ao empobrecimento da população”, justifica Casali. Para ele, prender não é solução. “O Brasil tem a terceira maior população carcerária e isso não resolve os problemas de segurança pública. É preciso entender que essas pessoas roubam não por maldade, mas necessidade básica”, adiciona.
O defensor público ainda mostra que das 287 pessoas que cometeram furtos famélicos, em Salvador, desde 2017, 25 delas permaneceram na prisão. Para a defensora pública Soraia Ramos, atuante na área de defesa penal, a Justiça e o sistema carcerário têm casos mais graves para lidar. “É importante dar prioridade aos casos mais graves, como homicídios e estupros, e avaliar o gasto imenso que o Estado tem para proteger o patrimônio de uma grande rede de supermercado que perdeu dois quilos de carne, sabonete ou um pacote de macarrão”, argumenta.
Ela afirma que não estimula esse tipo de ação, mas que, numa sociedade desigual como a brasileira, é inevitável que essas situações aconteçam. “São pessoas sem qualificação educacional, que não conseguem emprego, moradores de periferia e, em maioria, em situação de rua. Ela chega a esse desespero e comete o furto, de baixa periculosidade, então, não deve ser considerado como um criminoso qualquer”, acrescenta Soraia.
Inflação e desemprego são principais fatores para alta
As causas principais do aumento dos furtos famélicos são a inflação e desemprego, principais geradores da fome. Como consequência, vem a insegurança alimentar. “A alta no preço dos alimentos e o desemprego elevado são uma combinação que caba levando a uma insegurança alimentar das famílias não conseguirem comer produtos e nutrientes de todos os grupos alimentares”, explica a supervisora técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos na Bahia (Dieese-BA), Ana Georgina Dias.
Segundo Ana, a alta acumulada na cesta básica, em Salvador, foi de 32,89%, em 2020. Em 2021, que tem como base o ano de 2020, esse percentual foi para 8,17%. Esse ano, o acumulado já está em 6,58%. “Isso contribui para um aumento dos furtos. Além disso, diminui a renda das pessoas, por conta da inflação mais alta. Está cada vez mais difícil comprar os itens básicos familiares”, conta Dias. O produto que mais aumentou nos últimos 12 meses foi o café (92,79%), seguido do tomate (49,12%) e açúcar (42,47%).
Uma das Organizações Não Governamentais (ONGs) que ajuda baianos no combate à fome é Ação Cidadania. Antes da pandemia, eles faziam ações mais pontuais, como o Natal Sem Fome. Como a demanda aumentou, eles passaram a trabalhar o ano inteiro. “Começamos a nos mobilizar e não paramos de reunir cestas básicas, porque a fome vem aumentando, assim como a população de rua”, destaca o coordenador executivo da Ação Cidadania na Bahia, Raimundo Bandeira. A ONG ajuda cerca de 15 mil pessoas por mês, com a entrega de 30 toneladas de alimentos. Para doar, é só fazer um pix para o e-mail: Acaosalvador@hotmail.com
Fonte – Correio